sábado, 31 de outubro de 2009

hunf...

Existem duas coisas piores que a solidão: As más companhias e ter um livro ruim na bolsa (o que não deixa de ser também uma má companhia)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Uma História Confusa

Era quinta-feira. Como nas últimas quintas, ele estava muito nervoso e trazia um envelope na mão. Jogou o envelope em cima da mesa, ficou andando pelo quarto.
- Outra carta?- perguntei.
Não respondeu. Só fez um movimento impaciente com os ombros, que podia significar muitas coisas. Mas não disse nada. Eu então abri e li as palavras datilografadas com cuidado:
"Te vi por detrás das rosas e havia nos teus olhos uma ânsia muda. Algo assim como se quisesses falar comigo. Juro que na saída tentei me aproximar. Mas tive medo. Sei que ainda vamos ser amigos. Não quero forçar nada. Hoje é domingo pouco antes do almoço. A casa está vazia. Eu gostaria de ter escrito logo depois daquela noite. É incrível, mas há duas décadas, nesse mesmo dia da semana, nessa mesma hora, eu estava nascendo."
- É bonito - eu arrisquei. - Um pouco juvenil, talvez. Mas bonito. Afinal, a adolescência é sempre bonita.
- Ele tem vinte anos.
- Ele? Como é que você sabe que é ele e não ela?
- Eu acho, eu sinto. Uma mulher não escreveria essas coisas. Não sei, o jeito de escrever, alguma coisa.
- Pode ser - eu disse.
- E tinha uma outra carta, acho que não mostrei a você. Ele dizia que estava cansado, isso mesmo, cansado e não cansada.
- Não lembro - menti.- E ele pode estar mentindo. Essa data, por exemplo, essa data pode ser inventada.
Ele evitou meus olhos ao contar:
- Fui consultar um astrólogo. Ele nasceu a 22 de setembro de 1954. Entre mais ou menos dez e meio-dia. É de Virgem, o astrólogo disse, do último dia de Virgem. Pelos cálculos, o ascendente deve ser Escorpião.
- Ascendente?
- É o signo que. - Ele levantou os olhos, irritado. - Escuta, você não vai querer agora que eu te dê uma aula de astrologia, vai?
- Não, não. Só queria saber o que quer dizer isso.
- Quer dizer que ele deve ser inteligente. Muito inteligente. E secreto, misterioso, intenso. Só pelas cartas qualquer um percebe que ele tem certa... certa estrutura. As cartas são bem escritas, a gramática é sempre correta.
- É verdade - eu disse. - Corretíssima.
Ele sentou na beira da cama. E afundou no travesseiro:
- Não agüento mais. Isso tem quase dois meses. Preciso saber quem é essa pessoa.
Sentado aos pés da cama, eu não sabia o que dizer.
- Ele sabe tudo sobre mim, os meus horários, tudo. Às vezes fala das pessoas que conheço, de lugares onde vou. Deve estar sempre por perto, deve conhecer muita gente que eu conheço.
- Você está muito agitado.
- Claro. Como é que você queria que eu estivesse? Cada vez que recebo uma carta dessas fico assim. Me dá uma sensação estranha, saio na rua com a impressão que estou sendo observado. Alguém que eu não sei quem é acompanha todos os meus passos.
- Com amor - eu disse.
Ele acendeu um cigarro e ficou seguindo a fumaça até o teto:
- Amor? Não sei. É meio paranóico. Parece uma coisa para enlouquecer a gente devagar.
- Ou para fazer que você se interesse por ele.
Levantou-se de repente e debruçou-se na mesa. De costas, eu só podia ver seus ombros curvos e as duas mãos abertas segurando a cabeça.
- Fico imaginando as histórias mais incríveis. Às vezes acho que é alguém querendo divertir-se comigo.
- Não. - E disse pela segunda vez: - Isso é amor.
- Será? Tem coisas, tem coisas que ele escreve que parecem. Não sei, parecem verdade, entende? Ele me toca, mexe comigo. Talvez eu esteja assim todo lisonjeado porque alguém parece prestar tanta atenção em mim.
- Isso é amor - eu repeti pela terceira vez.
Ele caminhou até a janela. Percebi que olhava as folhas das palmeiras no meio da rua, remexidas pelo vento norte.
- Às vezes tenho vontade de bancar o detetive. Mas as pistas são muito tênues. Selos comuns, envelope comum, cada dia um carimbo de uma agência diferente. E esse tipo de máquina é o mais comum que existe.
- Lettera 22.
Ele jogou a ponta do cigarro pela janela, voltou-se de repente e me olhou nos olhos:
- Como é que você sabe?
- Bom, qualquer um que lida com máquina de escrever reconhece logo. É inconfundível - eu afirmei. E mudei de assunto: - Mas não deixa de ser bonito.
- Bonito e infernal.
- E antigo.
- Cartas anônimas. Parece coisa de romance do século passado. Romance epistolar. Platônico. - Suspirou fundo. - Mas eu preciso saber logo quem é esse rapaz. Nunca ninguém se interessou tanto por mim.
Tornou a sentar na mesa, acendeu outro cigarro. Estendi o cinzeiro para ele:
- Você sempre fuma demais nas quintas-feiras.
Ele riu:
- Agora nas quartas também. Fico pensando se no dia seguinte vai chegar outra carta. - Tragou fundo, olhos fechados. E acrescentou, soltando fumaça: - Também tenho escrito para ele.
- O quê?
- Tenho escrito para ele, escondido.
- Você não contou nada para Martha?
- Está louco? Você sabe como ela é ciumenta, contei só para você. Eu tenho que me esconder para escrever. Trancado no escritório, fico pensando que deve haver uma espécie assim de espírito do que eu estou escrevendo que sai pela janela, eu deixo sempre a janela aberta quando escrevo para ele, depois voa sobre os telhados e atravessa as ruas da cidade e as paredes para chegar até onde ele está, percebe?
- E o que você faz com as cartas que escreve?
- Guardo. A sete chaves. Um dia talvez possa entregá-las pessoalmente.
Eu também acendi um cigarro.
- E... o que você diz nessas cartas?
- Eu peço socorro. Eu digo que o meu casamento é um horror, já três anos desse horror que não acaba. Sabe que agora a Martha deu pra me chamar de fofo? Tem coisa mais odiosa? No domingo me pede uma parte do jornal e fica dizendo "olha só, fofo, precisamos aproveitar essa liquidação aqui, fofo, vai só até o dia 15, fofo".
- Mas a Martha era uma mulher tão... especial.
- Antes de casar. Depois que casa, toda mulher vira débil mental. Bem fez você que não entrou nessa.
Eu apaguei o cigarro:
- E o que mais você diz nessas cartas?
Ele curvou-se outra vez sobre a mesa, uma das mãos apoiava a cabeça, a outra passava lenta no tampo de madeira. Como uma carícia:
- Digo que às vezes eu tenho vontade de ter outra vez um amigo como aqueles que a gente tinha na adolescência. Aqueles pra quem você contava tudo, absolutamente tudo. E que no fim você nem sabe mais se é amigo ou irmão.
- Ou amante.
- Ou amante - ele repetiu. Depois jogou-se outra vez na cama, tirou uma folha amassada do bolso e leu: - Eu digo que estou disposto a qualquer coisa, eu digo assim: "Chegue bem perto de mim. Me olhe, me toque, me diga qualquer coisa. Ou não diga nada, mas chegue mais perto. Não seja idiota, não deixe isso se perder, virar poeira, virar nada. Daqui há pouco você vai crescer e achar tudo isso ridículo. Antes que tudo se perca, enquanto ainda posso dizer sim, por favor, chegue mais perto".
Dobrou a folha e tornou a enfiá-la no bolso, ainda mais amassada.
Ficamos nos olhando. Eu não sabia o que dizer. Ele afundou novamente na cama, virou-se para a parede. Fiquei ouvindo:
- Falo para você um pouco como se fosse para ele. Se você pudesse me ajudar, se ele pudesse me ajudar. É tão complicado. Saio na rua e fico olhando todos os meninos de vinte anos, como se cada um pudesse ser ele. Ando sentindo umas coisas que não entendo direito. Não gosto de não entender o que sinto. Não gosto de lidar com o que não conheço. Eu nunca vivi nada assim.
Um vento mais forte abriu a janela, fazendo voar as cinzas do cinzeiro sobre a mesa. Ele parecia menor, encolhido sobre a cama. Eu continuei ouvindo:
- Já tenho trinta e quatro anos, não posso sentir as coisas como se tivesse quinze. Você sabe, nós temos quase a mesma idade. Quanto você tem agora?
- Trinta e três - eu disse.
- Pois é, você sabe bem. A gente não tem mais idade pra ficar com esses delírios.
- Você acha que não? - eu perguntei. Mas ele continuou a falar sem ouvir.
- É tão estranho de repente saber que tem alguém pensando em mim o tempo todo. Alguém que eu não conheço. E que tem vinte anos. Fico pensando umas coisa loucas, não consigo parar.
- Que coisas - eu perguntei em voz baixa -, que coisas você pensa?
Ele passou a mão pela parede branca:
- Deitar do lado dele. Sem roupa. Abraçá-lo com força. Beijá-lo. Na boca. - Crispou a mão na parede e puxou-a para junto do corpo, para o meio das pernas. - Deve ser o vento norte, esse excesso de luz, a primavera chegando, a lua quase cheia. Não sei, desculpe. Eu estou muito confuso.
Ficou calado de repente. Olhava pela janela como se estivesse vendo algo, além das palmeiras, que eu não conseguia ver. Eu continuava sem saber o que dizer. Cheguei a chegar mais perto para estender a mão e tocar nos seus cabelos desgrenhados. E se não tivesse só vinte anos, esse rapaz, pensei em perguntar, você continuaria a gostar dele? Achei melhor não dizer nada. Parei minha mão no ar, depois puxei-a de volta para pegar outro cigarro. Mas continuei perto dele. Mais perto, bem perto. Era outra quinta-feira, esta de setembro, e desde o início de agosto nós andávamos os dois muito confusos.


(Caio Fernando Abreu, Ovelhas Negras)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Feito Mudo

Tento gritar feito mudo
Sob o mundo surdo
Encantado com papeis picados,
anarquizados
Enxotados do sistema capital
feito imundos
Eu me mudo de lugar
Quanto mais escuto o som do escudo
que não possa falhar
Sinto o luto dos mortos
pelos quais já não posso lutar
Feito a luz eu me escondo
onde os segundos demoram a passar
Não me mostro no escuro
Eu espero que seguro
seja o abrigo a me guardar

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Monstros Imaculados

Em algum lugar do mundo vive uma filósofa extraordinária chamada Florie Rotondo. Um dia desses eu me deparei com um pensamento dela numa revista sobre as redações das crianças em idade escolar. Dizia assim:

"Se eu pudesse fazer tudo o que eu quisesse, eu iria até o centro do nosso planeta, Terra, procurar urânio, rubis e ouro. Eu ia procurar Monstros Imaculados. Depois eu ia me mudar, para o campo", Florie Rotondo, 8.

Florie, querida, eu sei muito bem o que você quer dizer – mesmo que você não saiba: Como, aos oito anos? Eu já estive no centro do nosso planeta; ou pelo
menos sofri todas as atribulações que uma viagem dessas pode causar. Procurei urânio, rubis e ouro e, no caminho, encontrei outras pessoas nessa mesma busca. E, Florie, preste atenção – eu encontrei Monstros Imaculados! Maculados também. Mas os imaculados são o tipo mais raro: trufas brancas em comparação às negras; o aspargo selvagem, amargo, em vez da variedade cultivada em jardim. O que não fiz foi me mudar para o interior.


(Truman Capote, Súplicas Atendidas)

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Agonia Atômica

Aos velhos do evangelho,
De olhos caolhos e mentes caducas
O que faz vocês pensarem
Que são mentiras
As evidências supersônicas
De um flerte cibernético
Da minha rendição platônica
Do meu desespero harmônico
Resgatado do açoite publico,
O engodo da fé irônica
Proclamada heresia,
Incertezas, loucas garantias
Rasgando a farda na sacristia,
Magoados desaguamos
Nessa paixão canônica
Que enforca e condena
Com as órbitas da agonia atômica

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Retorno às enseadas da lua - cena final

Contudo eu estando seguro na cidade - não me fariam mal ali -, somente no deserto a morte poderia se aproximar como um escorpião com o seu ferrão. Se alguém quisesse atirar em mim, poderia fazê-lo aqui. Ninguém atirou, porém, e segui caminhando, e achei uma cabine no acostamento de uma estrada vazia, uma cabine telefônica com o disco do aparelho enferrujado. Entrei nela, disquei e pedi para falar com Cherry. E, ao luar, uma voz me respondeu, uma voz adorável, e disse:

-Ora, alô benzinho, pensei que não iria me ligar nunca. Está tudo legal agora, e as garotas estão ótimas. Marilyn me pediu para dizer olá. Nos damos bem, o que é estranho, entende, porque as garotas costumam se estranhar. Mas tchau-tchau, lindinho, e pode ficar com os dados de graça, a lua saiu e ela é uma mãe pra mim.

Desliguei e voltei à cidade jóia, e pensei que antes de deixar os arranhas-céus talvez pudesse ligar para ela mais uma vez.Pela manhã, eu praticamente recuperara minha sanidade, arrumei as malas do carro e comecei a longa viagem para Guatemala e Iucatã.

Princetown,
Nova York,
Setembro de 1963- Outubro de 1964


(Um sonho americano, Norman Mailer)

Ferida de Frida

Ciganos suspendem o silêncio do sonho ancestral
Sinal da sombra do sóbrio, serpente celestial
Cem cegos saram na sina fatal
Somente no sentido suicida de um funeral

Solvente selvagem da soma segrega o mortal
Sangue sugado do suado sono capital
Solo sagrado subordinado, aventura acidental
Sonoros, sinos sopram suntuosos o madrigal

Cenas serenas do sexo mau
Sacodem, sucumbem à ordem do espaço sideral
Soturno, socorre sabendo a apatia nacional
O cerco sacana subverte seu potencial

domingo, 18 de outubro de 2009

Corações Lacônicos

Corações Lacônicos

A gente não tinha tempo de escutar um ao outro naquele verão. Brincávamos de jogos banais e acertávamos pedras em vidraças de lojas no centro da cidade. Dois desocupados ocupados consigo. Na falsa cumplicidade das tardes rolava o som do rock lento e as beatas da igreja se benziam apagadas quando espiavam pela janela da casa dele.
O calor estava matando um pouco mais que o normal. A cada dia, feito serpentes, nosso couro descamava. Era a mudança que batia na porta. Parasita de um tempo mal, nos transformava em adultos na penumbra da vida. Os sorrisos desciam pelo ralo do chuveiro enquanto despertávamos do sonho. A gente não podia conhecer ainda o gosto do sal que toma conta da boca quando choramos. O choro é quando não podemos expressar em palavras o que sentimos. Calados, a coragem frágil que o impulso provoca se esvaiu.
A rua erguida com paredes de ar e conchas submarinas nos convidava a assistir a matilha de lobos uivando enfurecida com o fim da madrugada. Ao desbravar as cortinas de ferro encravadas na alma, viajamos entre as longas avenidas proibidas e cheias de chuva. As poças d’água que espelham o arco-íris são um cenário perfeito para muitas reencarnações, mesmo que sejamos animais ou insetos, se a duração de nossas existências fosse pouco mais de 24 horas e depois explodíssemos no escuro. Foi ali que, unidos, escutamos o ruído do vento e deixamos que seu canto ecoasse nos porões já trancados dos corações lacônicos.

Google Earth

Encontrei uma poesia boba hoje. Que saudade boa

Google Earth

Geralmente anoiteço
pouco a pouco
entre os cansados
A lua, grande e amarela
lembra queijo chabembert
Não há estrelas, só satélites
Tiro a roupa, visto o pijama
Temo que isso seja um ato natural a se realizar em frente a câmeras de segurança
um dia
Que desassossego é viver em um mundo vigiado pelo Google Earth.

E lá vamos nós...

Pela milionésima vez eu criei um blog. Vamos ver se agora presta. O que eu fiquei mais puta esses tempos foi que o imbecil do marido da minha prima (como alguém casa com uma pessoa tão idiota assim, eu não entendo...) fez uma firula aqui no meu computador e eu perdi simplesmente tudo. Eu sei que tem coisa pior que isso, mas eu perdi muita coisa que tinha escrito. No geral, faço tudo manuscrito mesmo, e depois passo pro computador, é uma forma de ficar mais tempo observando os textos. Mas tem coisa que faço diretão aqui. E a gente sempre muda alguma coisa antes da versão definitiva e perde o controle. Enfim, ter um blog pode ser uma solução pra que as coisas se tornem mais duradouras e tem gente que me enche o saco para eu ter um! (Só não sei por que, uma moça latinoamericana sem parentes importantes)
Mas vamos deixar de onda. A prosa infelizmente não faz parte do meu campo de concentração. Mas quem sabe um dia eu não alcanço a perfeição de um cidadão ateniense, eles que não tinham escolas de ensino médio ou mulheres para encher o saco...blablablablabla :)